No capítulo passado, vimos que
a Umbanda se tornou bastante popular no Brasil, espalhando-se por todos os
estados, aparecendo em todas as mídias, despertando a atenção de pesquisadores
brasileiros e estrangeiros, além de influenciar nossas músicas e costumes como
um todo.
Vimos também que, embora o
esforço de diversos companheiros em criar entidades federativas que pudessem
nortear o crescimento da religião, na prática, isso foi pouco efetivo: a
religião cresceu de forma autônoma e independente na maioria das cidades.
Estudamos, também, que as
principais federativas do Rio de Janeiro não partilhavam a mesma visão sobre a
religião, o que criou uma celeuma, cujos efeitos são perceptíveis ainda hoje e que,
com o correr dos anos, outras tantas federativas foram criadas, em diversos estados,
cada uma com um “projeto de Umbanda”, aumentando ainda mais a diversidade, por
um lado, mas também as tensões, por outro.
Assim, não houve um único fator
que levasse a Umbanda a decrescer, mas uma série deles: grande número de
terreiros, mas com baixa qualidade; desconhecimento sobre os princípios da
religião; entidades federativas que disputavam espaço e poder; busca
desesperada por apoio político e, por fim, as pregações de algumas igrejas
neopentecostais.
Terreiros
Alexandre Cumino cita uma fala
muito interessante de Ronaldo Linares sobre a Umbanda dos anos oitenta:
“A Umbanda teve um “bum”, um
crescimento extraordinário na década de 70/80, tinha terreiro em tudo quanto
era canto, mas a qualidade destes terreiros, minha Nossa Senhora, era sofrível,
compreende? Depois disso, a Umbanda teve um esvaziamento muito grande.” Pág. 19
Basicamente, o que aconteceu é
a versão prática daquilo que Pai Antônio (preto-velho que trabalhava com o
Zélio) costumava cantar: “todo mundo qué Umbanda, qué qué qué... Mas, ninguém
sabe o que é Umbanda, qué qué qué Umbanda...”
Se, inicialmente, a religião
foi se espalhando com terreiros que surgiam aqui e ali e que, a seu tempo,
formavam novos médiuns que formavam novas casas, conforme a Umbanda ganha
popularidade, o trânsito de pessoas entre casas cresce vertiginosamente.
Eu especulo que esta tenha
sido a principal razão para o surgimento de casas desestruturadas, pois é o
principal motivo ainda hoje: o médium fica um tempo numa casa, aprende um
pouco. Depois, por qualquer razão sai e procura outra, onde aprende alguma
coisa, depois sai e procura outra, até que decide que já aprendeu o suficiente
e abre a sua própria, muitas vezes, sem outorga espiritual para isso...
Assim, os terreiros se
multiplicam vertiginosamente, mas sem bases profundas. Isso fica evidente na
literatura produzida entre 1950-1970... Eu tenho alguns exemplares destes
livros, que ainda são vendidos em lojas de artigos religiosos e posso dizer sem
receio de errar: são péssimos! (comentarei mais sobre isso futuramente).
Com essa multiplicidade de
terreiros surgem, também, uma multiplicidade de opiniões sobre a religião, seus
princípios e suas práticas. Por um lado, isso foi positivo, pois levou à
diversidade, porém, por outro, foi terrível, pois produziu confusão: você podia
ir num terreiro que trabalhava pela caridade, gratuitamente e apenas para o bem
e no quarteirão seguinte frequentar uma casa cujas consultas eram pagas e os
trabalhos se assemelhavam a um baile de carnaval e todos se definiam como
Umbanda!
E se, inicialmente, os
terreiros se ajudavam mutuamente, cedendo médiuns quando necessário, neste
período, o que caracteriza a conduta dos terreiros é a disputa. É neste período
que surge a “feudalização dos terreiros”, isto é, cada um se comportando como
um “pequeno reino” e vendo seu vizinho não como um irmão de caminhada, mas como
um potencial inimigo, alguém disposto a “tomar suas terras”.
Essa postura produziu um
estado de tensão e aversão entre os terreiros, fazendo com que muitos dirigentes
simplesmente proibissem seus membros de visitar outra casa, sob pena de
expulsão...
Há um registro muito interessante feito por alemães e que mostra um pouco sobre os trabalhos no Rio de Janeiro, sem bem que no início da década de 1970. Aqui publico este vídeo não com o intento de julgar a prática da referida casa, mas como um registro da diversidade e por ser um dos poucos vídeos da época disponíveis:
Princípios básicos
Outra característica deste
período é que os princípios da religião se resumem aos “princípios da minha
casa”. Assim, cada terreiro com sua doutrina, cada terreiro com suas práticas,
cada terreiro com o que julga certo ou errado (vemos ecos disso ainda hoje).
Dentre estes princípios, havia
um que, embora surgido bem antes, fica bastante evidente neste momento: o
médium nada precisa saber, a entidade tudo sabe. Isto é, havia o receio de que,
com o estudo, o médium pudesse influenciar a manifestação, contaminando-a. Eu
especulo que, além disso, também atemorizava os dirigentes a ideia de ensinar
alguém que, amanhã, poderia ser o seu “rival”.
Tudo era segredo, quase nada
era ensinado.
A pessoa chegava ao terreiro
como consulente, recebia a informação de que era médium, perguntavam se ela
gostaria de se desenvolver e, se respondesse que sim, na próxima gira já vinha
de branco, era inserida no desenvolvimento e ia, gradativamente, aprendendo uma
coisa aqui e outra ali, sem nenhum aprofundamento.
Aprendia que devia acender
velas, fazer tais banhos, agir assim ou assado, arriar estas ou aquelas
oferendas, mas nada lhe era explicado: os fundamentos, os motivos, as razões,
eram mantidos em segredo e quem sabia os segredos detinha poder e quem tinha
poder, tinha a casa cheia...
A pessoa podia permanecer dez
anos no terreiro, já ter desenvolvido a sua mediunidade e se lhe fosse pedido
que explicasse o motivo de se fazer assim ou assado na Umbanda, respondia que
não sabia dizer que só mesmo “indo pra ver”. Qualquer semelhança com a nossa
realidade não é mera coincidência...
Tente imaginar este processo
acontecendo não apenas em um terreiro, mas em milhares, todas as semanas,
durante muitos anos e você entenderá o porquê, ainda hoje, há tantas informações
desencontradas sobre a religião...
Toda essa desinformação fez
com que muitos adeptos se definissem como católicos, espíritas, espiritualistas
ou a dizer simplesmente que “estavam” na Umbanda, mas não “eram da Umbanda”.
Federativas
Embora o desejo nobre e
sincero de ajudar, as federativas se atrapalharam na busca pelo poder e direção
do movimento. Vamos recorrer, novamente, as citações de Cumino:
“Ainda em 1986, a chamada
Academia Federal Superior de Umbanda Esotérica e Espiritualista publicou, no
dia 10 de dezembro, no Diário Oficial da União, matéria em que se arrogava o
direito disciplinador sobre a Umbanda e demais cultos afro-brasileiros que,
para funcionar, teriam de ter sua permissão, mediante a concessão de carteira
aos pais de santo. Além disso, ficavam proibidos os despachos em vias públicas.
Referindo-se à publicação, o Jornal
da Tarde do dia seguinte informava: “Chefe de Umbanda, só com carteirinha”. Tratava-se
evidentemente de federação que procurava a hegemonia por meio de publicação de
matéria no Diário da União, que, embora paga, sugeria tratar-se de medida
oficial.
Tanta repercussão a matéria
alcançou que motivou desmentido formal do presidente Sarney, em sua “Conversa
ao pé do rádio”, conforme transcreveu a Folha de S. Paulo em 10 de janeiro de 1987:
Eu não sei também a que
atribuir, mas divulgaram que o governo havia proibido práticas religiosas de
Umbanda e de outros cultos. Quero dizer que esta decisão nunca existiu, não é verdadeira,
nunca se tratou disso em nível de governo. E nunca iremos tratar disso. A Constituição
respeita a liberdade de culto nesse país. E eu sempre respeitei, respeito e
respeitarei essa liberdade, como homem de fé. Eu até hoje, quero repetir, não
sei como esta notícia surgiu e nem com que finalidade ela foi divulgada.” pág. 22
Desde o congresso de 1941,
onde fica evidente a crise identitária do movimento e sua aposta em teorias sem
fundamentação histórica, como dizer que a Umbanda veio da Atlântida ou da Lemúria
(sem comentários...), cada federativa construiu uma visão própria de Umbanda e
se via no dever/direito de conduzir a massa pelo caminho delineado.
O resultado só podia ser
conflito e desinformação. Porém, não apenas isso.
Buscando fortalecimento, várias delas buscaram apoio político.
Política
Em 1960, os umbandistas
conseguiram eleger Átila Nunes como deputado pelo então estado da Guanabara. Era
a primeira vez que alguém se elegia como representante da religião. Sua eleição
abriu caminho para tantos outros que, ainda hoje, buscam um lugar “ao sol” como
representantes da mesma.
As federativas também queriam
atrair esta força política. Cumino cita:
“A matéria seguinte, “Uma
Festa Política para Ogum”, provinha de São Paulo, publicada no Jornal da Tarde
de 27 de abril de 1981, registrando o início da movimentação em torno das
eleições do ano vindouro:
Mais de 6000 adeptos de
Umbanda foram ontem ao Ginásio do Ibirapuera para a festa em homenagem a São
Jorge, ou Ogum, mas o acontecimento foi muito mais político que religioso: governantes
e membros do PDS e do PTB fizeram filas para discursar e tentar ganhar votos. Até
a imagem do santo ficou esquecida [...].” Pág. 21
Quem me conhece sabe o quanto
gosto de política, então, não vou comentar. Creio que a citação fale por si
mesma...
Igrejas neopentecostais
Como abordamos este tema no
cap. 16, limitarei a dizer o seguinte: não foram as perseguições obsessivas
dos pastores de algumas igrejas neopentecostais que causaram a retração da
religião, foi todo o contexto exposto acima.
O que estes pastores fizerem
foi aproveitar toda confusão e desinformação existente neste período para
arrebanhar fiéis para suas fileiras. Os discursos inflamados contra a religião
vinham de encontro as frustrações e decepções dos adeptos que passaram a ver
nestas igrejas um caminho para suas religiosidades.
É certo que toda essa pregação
contrária deixaria uma mancha na religião, porém, este efeito se tornaria
evidente apenas anos depois.
Bolha
O que aconteceu à religião nos
anos oitenta é semelhante ao conceito de uma bolha econômica, hoje em dia.
O crescimento desenfreado de
terreiros, o aumento exponencial do número de adeptos sem boa formação, as
várias federações disputando a liderança do movimento, a busca desesperada por
apoio político e, por fim, o surgimento de igrejas que apostavam na teologia da
prosperidade e discursavam contra a religião, fizeram estourar a “bolha da
Umbanda”.
Lembra-se que, no capítulo
passado, vimos que mais de 1 milhão de pessoas estavam em Praia Grande para homenagear
Iemanjá? Em 1980, apenas um ano depois, a situação foi bem diversa. Cita
Cumino:
“O informativo Integração
Umbandista, de 1979, faz a estimativa de mais de um milhão de pessoas, o que
deve ter sido o ponto mais alto da Festividade. Já no ano seguinte, 1980, a
Folha de São Paulo comenta: “A tradicional Festa de Iemanjá... não recebeu o
mesmo número de pessoas dos anos anteriores, estimando o reduzido número de 20
mil pessoas presentes”. Pág. 12
Toda essa confusão, ao longo
de uma década, fez com que muitas pessoas simplesmente se afastassem dos
terreiros. As brigas, decepções e disputas entre médiuns e terreiros fizeram
com que muitos simplesmente
“aposentassem as suas guias”, afastando-se definitivamente da religião, quando
não migrassem para as igrejas neopentecostais.
Boa parte dos terreiros
fecharam suas portas para sempre. Houve redução do número de adeptos segundo o
censo:
Em 1991 – 541.518 pessoas;
Em 2000 – 432.001 pessoas;
Em 2010 – 407.331 pessoas.
É claro que os dados do IBGE
são obtidos por amostragens, contudo, são razoáveis para se ter ideia do número
de adeptos e, como está claro, vem caindo desde 1991.
Especulo, contudo, que o
próximo censo registrará aumento, principalmente, por conta das redes sociais.
Referência
1 - CUMINO, Alexandre. Terceiro e Quarto Período, Esvaziamento e Amadurecimento. Texto 4.01. Material de Apoio. História da Umbanda - EAD - Curso Virtual Gratuito. 2016.
Até a próxima aula!
Leonardo montes
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