Foto do livro: UMBANDA – A MANIFESTAÇÃO DO ESPÍRITO PARA A CARIDADE (p. 206) |
Em fins do século XIX e início
do século XX, temos notícias de uma religião misteriosa que se desenvolveu
principalmente no Espírito Santo, chamada: Cabula.
A palavra Cabula,
provavelmente, deriva de Cabala (de origem judaica) e que deve ter sido
propagada por influência dos povos malês que foram escravizados no Brasil e que
tinham uma cultura islamizada por conta das invasões árabes no norte da África,
de onde vieram.
A primeira menção a esta
religião que se tem notícias veio através do bispo João Batista Corrêa Nery em
uma carta que foi descoberta pelo pesquisador Nina Rodrigues que a inseriu em
seus livros.
Nesta carta, o bispo relata
ter conhecido uma “seita” estranha e misteriosa em sua visita à cidade de São
Mateus, no norte do estado. Tão impressionado ficou com tudo que ouviu dos
moradores locais quanto de ex-praticantes que se dedicou alguns dias a estudar
e conhecer o assunto.
A primeira constatação de Nery
é que se tratava de uma prática religiosa envolta em mistério e silêncio pelo
risco de vida que corriam todos os que se dispunham a “contar os segredos” dos
cabulistas (praticantes de Cabula).
Havia uma jura de morte por
envenenamento caso tais segredos fossem revelados (eu especulo que tenha
surgido aqui esse mito que perpetua até os nossos dias, algo adaptado, de que
se a pessoa sair da Umbanda ela será castigada, sua vida desandará, etc).
Mesmo com esses receios,
algumas pessoas se dispuseram a falar e o que foi registrado por Nery foi
fundamentalmente importante para compreendermos não só essa misteriosa
religião, mas os antecedentes da própria Umbanda, que como vimos em estudo
anterior, estava sendo implantada pelo Mundo Espiritual, embora sem relativo
sucesso até 1908.
Esta carta é de 1901, mas Nery
relata que a “seita” existia mesmo antes da abolição da escravatura e que,
àquela altura, contava com adeptos brancos e negros, chegando a mais de oito
mil integrantes, o que o surpreendeu fortemente por se tratar de um movimento
muito grande numa localidade tão distante dos grandes centros urbanos.
As cerimônias da Cabula
ocorriam nas matas fechadas, distantes de olhos curiosos. O iniciante na
religião era chamado de Cafioto. Os
adeptos homens mais experientes eram chamados de Macambos e as mulheres de Macambas.
O local das reuniões era chamado de Camucite.
Os homens usavam camisa e
calça brancas, um cinturão com símbolos religiosos e um gorro branco do tipo
muçulmano à cabeça. As mulheres deviam usar uma vestimenta semelhante, talvez
com uma saia.
Os apetrechos de trabalho
incluíam espelhos, pedras, cachimbos, ervas e um altar com imagens católicas
sobre uma mesa. O chefe do trabalho era chamado de Embanda e era auxiliado por um Cambone,
a quem competia acender o cachimbo ou charuto e acompanhar a entidade em
sua manifestação.
Nestas reuniões manifestavam-se
espíritos de pretos-velhos, caboclos, exus, pombagiras, etc. As entidades
faziam uso do fumo e também bebidas que iam do vinho à cachaça. Ao que parece,
não havia a divisão de linhas: as entidades se manifestavam de forma mista, ou
seja, num trabalho poderia estar em terra um preto-velho, um caboclo, um exu e
uma pombagira ao mesmo tempo.
Essas reuniões se davam
preferencialmente em torno de uma grande árvore onde se fazia um grande círculo
de pessoas. Durante o ritual, andava-se em círculo por toda extensão ao redor
da árvore até que entrassem em transe, recebendo as entidades, quando, então,
formava-se uma Engira (é provável que
venha daqui o termo “gira” aplicado aos trabalhos atuais de Umbanda).
As entidades, quando
manifestadas, eram chamadas de tatás
(pelo grande número de palavras em Quimbundo, percebe-se que havia muita
influência Bantu na Cabula). Cada grupo de Cabula era chamada de Mesa.
Os rituais eram iniciados com
uma oração, seguidos de pontos cantados, como o que se segue:
"Dai-me licença, Carunga
"Dai-me licença, tatá
"Dai-me licença, baculo
Que o embanda qué[r] quendá[r]".
Existem outros
detalhes interessantíssimos sobre esta prática, porém, não a abordarei aqui.
Meu objetivo é oferecer, em linhas gerais, um panorama sobre este movimento
que, sem dúvida, poderia ser classificado como precursor da Umbanda.
Contudo, apesar das
semelhanças, haviam diferenças gritantes entre a Umbanda e a Cabula. Por
exemplo:
Quando o Embanda incorporava, o Cambone trazia brasas para que este
colocasse na boca, enquanto cantava pontos (talvez aqui tenha nascido as
famosas provas de fogo, cujo objetivo era o de comprovar se a pessoa estava
mesmo incorporada).
Os demais médiuns, em
transe, eram testados com azeite fervente: se estivessem mesmo incorporados, não
deviam se queimar.
Para purificarem-se,
o Embanda passava uma vela acesa sobre o
corpo do médium. Se a vela se apagasse, era sinal de pouca fé, o que lhe
renderia castigos físicos através de uma palmatória.
Os novatos deviam
passar três vezes por debaixo das pernas do Embanda,
como prova de submissão a ele.
Os trabalhos não
tinham diretriz moral definida, pendendo para o bem ou para o mau, conforme os
interesses.
Inicialmente, os
trabalhos visavam atender a demanda dos escravos por liberdade ou melhores
condições de vida. Posteriormente, passaram a atender interesses diversos e,
por fim, criaram um clima de agitação nas cidades vizinhas que temiam os
feitiços, causando conflitos, inclusive, entre diversas Mesas, às quais se destacavam a de Santa Bárbara e a de Santa
Maria.
Padrinho Juruá
registra em seu livro (p. 223) o seguinte relato de um ex-cabuleiro:
“- Houve um ponto que foi um confronto entre duas mesas de Cabula.
Uma de Santa Maria (a mais frequentada) e outra de Santa Bárbara (de menor
número de adeptos). Eu estava na mesa de Santa Maria. Era um cabuleiro querendo
matar o outro. Um chamava-se Sebastião e o outro Zé Gonçalves, mas esse era
mais conhecido com Zé da mesa de Santa Bárbara.
- Quando estava acabando a sessão na de Santa Maria,
apareceu uma cobra no meio da mesa. O cabuleiro ordenou ao seu cambone que não
deixasse ninguém matar ou tocar nela. Pegou uma zema (areia) e soprou em cima
da cobra, dizendo que foi o Zé da mesa de Santa Bárbara quem havia enviado a
cobra para matá-lo. Colocou levemente a mão sobre ela. E ela morreu logo em
seguida.
- Depois de encerrado a sessão da Cabula, ele convidou os
participantes a seguirem com ele para a beira do rio, a fim de apreciar o corpo
de Zé da mesa de Santa Bárbara passar para o cemitério. E não é que apareceu
uma canoa com o corpo do Zé? Uma grande canoa de pequi, com adeptos da mesa de
Santa Bárbara, em silêncio, trazendo o defunto do cabuleiro inimigo para ser
enterrado no cemitério de Itaúnas.”
O fim da Cabula,
contudo, é um dos episódios mais nefandos de intolerância religiosa que já tive
notícias, pois a igreja pressionou o Estado que passou a ver a Cabula como
atividade criminosa, intensificando as perseguições que, não raro, culminavam
em chacinas.
Os cabuleiros que não
foram mortos acabaram deixando a prática para sempre e uma parte acabou
migrando para o Rio de Janeiro, levando consigo a tradição religiosa aprendida
e que seria mesclada ao culto aos Orixás, efervescente na capital a época,
dando origem a uma religião muito semelhante a Cabula e que ficou conhecida
como Macumba.
MACUMBA CARIOCA
Quando você ouve a
palavra Macumba, o que lhe vem à mente? Provavelmente, algum despacho numa
encruzilhada com um alguidar, velas, bebidas... Não é mesmo?
Se pesquisar na
internet, encontrará outras tantas informações: Macumba era um instrumento, como um reco-reco; Macumba era uma árvore;
Macumba era um tambor, e assim vai.
Toda essa confusão
gira em torno da polissemia, isto é, os diversos significados atribuídos a uma
mesma palavra ou expressão. Por exemplo, quando alguém diz que está comendo um
“pé-de-moleque” você sabe que é um doce e não o pé de uma criança, certo?
O mesmo acontecia com
o termo Macumba que passou a ser usado para definir tanto um tipo de reco-reco,
quanto uma árvore, quanto um tambor, etc. Todos estes significados estão
corretos, cada um em seu contexto. A origem etimológica do termo, porém, varia
tanto que nem me arriscarei a dar uma definição mais ou menos precisa.
O que importa a este
estudo é saber que a Macumba (também chamada de Macumba Carioca, por ter florescido no Rio de Janeiro), foi uma
religião oriunda da fusão da tradição cabuleira com diversos outras influências
religiosas existentes na capital (Angola, Nagô, Candomblé de Caboclo, etc),
principalmente, devido ao fluxo migratório pós-escravidão.
Foto do livro: UMBANDA – A MANIFESTAÇÃO DO ESPÍRITO PARA A CARIDADE (p. 207) |
Se a Cabula se desenvolvia de forma secreta, em meio às matas, a Macumba se deu no meio da
cidade, do centro à periferia, espalhando-se de forma vertiginosa, a ponto de,
em 1904, João do Rio, ao publicar o clássico “Religiões do Rio”, afirmar:
“Nós dependemos do feitiço. Não é um paradoxo, é a verdade
de uma observação longa e dolorosa. Há no Rio, magos estranhos que conhecem a
alquimia e os filtros encantados, como nas mágicas de teatro, há Espíritos que
incomodam as almas para fazer os maridos incorrigíveis voltarem ao tálamo
conjugal, há bruxas que abalam o invisível só pelo prazer de ligar dois corpos
apaixonados, mas nenhum desses homens, nenhuma dessas horrendas mulheres tem
para este povo o indiscutível valor do feitiço, do misterioso preparado dos
negros”. (p. 09)
Os macumbeiros também
trabalhavam de branco e, por vezes, com roupas coloridas. As entidades fumavam,
bebiam, riscavam ponto, da mesma forma que se fazia na Cabula.
Os macumbeiros
(praticantes da Macumba) tocavam freneticamente os tambores e as reuniões não
tinham hora para acabar. Manifestavam-se espíritos de ancestrais africanos,
caboclos, exus, etc.
Quando incorporados,
para atestar a veracidade da manifestação, queimava-se pólvora nas mãos do
médium ou eram obrigados a caminhar sobre cacos de vidro ou ainda comê-los.
Os trabalhos também
eram amorais e, aparentemente, desequilibrados para o lado do mal, pois os
relatos de pessoas que procuravam as casas de Macumba para pedir malefícios aos
seus desafetos era muito grande, além de, obviamente, serem pagos...
A sociedade carioca ao mesmo tempo fomentava o feitiço, como escreveu João do Rio, e o detestava
profundamente. O preconceito ganhou novo fôlego. As repressões policiais
motivadas pela pressão da igreja se intensificaram fortemente (falaremos mais
sobre isso no capítulo das perseguições).
Diferentemente da
Cabula, contudo, a Macumba não foi extinta na força da bala, mas foi se
transformando. Com a popularização da Umbanda, muitos macumbeiros continuaram a
exercer o seu ofício, chamando-o, agora, de Umbanda, ao passo que outros tantos
migraram para os Candomblés e talvez alguns poucos ainda mantenham suas
práticas em pequenos grupos espalhados aqui e ali.
CABULA – MACUMBA –
UMBANDA
Os pesquisadores do passado, enxergando na Umbanda muitos elementos ritualísticos semelhantes às
anteriores, terminaram por concluir (e esta é a visão dominante no meio
acadêmico), que a Umbanda seja uma espécie de Macumba “esbranquiçada”,
“espiritizada”, adaptada ao gosto da classe média carioca no início do século
XX, sem muitos elementos “dos negros” em sua formação.
Esta visão me parece
completamente ideológica e foi responsável por legar a Umbanda, no seio
acadêmico, a um campo terciário, pois muitos intelectuais a viram apenas como
“sincretismo”, uma prática que perdeu a sua “essência negra” e, portanto, pouco
interessante culturalmente.
O que estes
pesquisadores ignoravam (e continuam ignorando) é que a Umbanda não foi
construída apenas e tão somente por movimentos humanos, mas por força da
Espiritualidade Superior, que procurando edificar na Terra o movimento que
permitisse às entidades praticar a sua caridade e não encontrando campo fértil
na Cabula e na Macumba, deram origem a uma nova frente de trabalho,
profundamente entrelaçada com a moral Cristã (algo que as anteriores não
possuíam), e que chamamos hoje de Umbanda.
Até a próxima aula!
Leonardo Montes
Me gustó mucho esta clase!
ResponderExcluirGrato!
ResponderExcluirOlá, Leonardo.
ResponderExcluirMais uma aula muito interessante!
Gostaria de saber se existe alguma relação entre a cabula e o batuque, muito praticado no Rio Grande do Sul (acho que a maioria dos terreiros, que lá se chama terreirA com "a" no final, é praticante de batuque). Pergunto isso pois reconheci no seu texto dois termos usados por lá:"engira" e "cafioto", daí minha curiosidade. Sei quase nada sobre o batuque e muito pouco dobre a Umbanda, mas estou aprendendo muito com seu canal no You Tube e com o curso. Gratidão! Sucesso!
Oi, Débora. Esta é uma boa pergunta, contudo, não sei te responder. Na verdade, nesta caminhada, nunca encontrei alguém que participasse do Batuque. Já li algumas coisas na internet, mas nunca tive contato.
ResponderExcluirSerá que é dai que vem o termo "encabulado"? rs
ResponderExcluirTambém não sei. Já ouvi dizer que é de onde veio o termo "cabuloso".
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