CURSO BÁSICO DE UMBANDA - CAP. 03 - ESCRAVIDÃO AFRICANA

Escravos numa mina de ouro. Acervo Geledés

No capítulo anterior estudamos as motivações dos portugueses para as grandes navegações e também as razões para a exploração agrícola do solo brasileiro. Considero importante que estejam claras essas motivações para que não caíamos em reducionismos que apenas empobrecem a visão dos povos, frequentemente descontextualizados.

Você deve se lembrar que, gradativamente, a escravidão indígena se tornou pouco atrativa para os colonizadores, haja vista os constantes conflitos, a negação do índio ao trabalho e a pressão dos jesuítas, foram verdadeiros obstáculos à força produtiva.

Contudo, a terra precisava ser cultivada e a metrópole ansiava por riquezas. Devido a escassez de mão de obra, qual foi a solução encontrada?


Cabe lembrar que a escravidão foi comum entre diversos povos: gregos, romanos, persas, egípcios, astecas, etc. Ou seja, desde que o “mundo é mundo”, pessoas são feitas escravas e vendidas. Portanto, não se trata de um fenômeno novo, pelo contrário, é algo bem antigo.

A escravidão era conhecida e praticada na África entre os próprios africanos que faziam, como boa parte do mundo antigo, um comércio bastante lucrativo com a venda de escravos. Não se tratou, como muitas pessoas ainda pensam, de um problema de cor de pele, mas uma questão de status social!

Contudo, motivados pelos Árabes, os portugueses elevaram a escravidão africana a um outro nível.

Portugueses na África

Desde o começo do século XV, os portugueses estabeleceram relações comerciais com algumas ilhas da costa africana, onde conheceram o tráfico de escravos.

Em 1482 chegaram em Angola onde adquiriram escravos para a colônia na América. Logo estabeleceram relações comerciais com o Congo, onde também adquiriram escravos e, já quase na virada do século, comerciaram com Moçambique.

Além dos países já citados, os portugueses (e depois ingleses, espanhóis, holandeses, franceses, estadunidenses, etc.), também obtiveram escravos da: Nigéria, Sudão, Costa do Marfim, Togo, Gana, Benin, etc.

Não há números precisos, mas estima-se que pelo menos 4 milhões tenham vindos para o Brasil e 12 milhões em todo o continente americano: É muita gente!

Lembre-se: A África é um continente habitado por pessoas de diferentes regiões, que falam diferentes línguas com diversas religiões, etc. Será muito importante, em nossos estudos futuros, que você compreenda esta diversidade que será fundamental para entender o caráter sincrético da religiosidade brasileira.

Embora, realmente, diversas expedições de portugueses indo à “caça” de escravos tenham ocorrido, a maior parte foi obtida de forma “pacífica” por meio de contratos de compra e venda (às vezes em moeda, outras tantas em açúcar, armas de fogo, cachaça, etc).

Ainda na costa, os escravos eram leiloados e comprados por diversos mercadores ávidos por fazer fortuna no novo mundo. Até 600 pessoas eram amontoadas em navios que viriam para o Brasil. Subnutridos, maltratados, em péssimas condições de higiene, cerca de 10% morriam na travessia e eram jogados ao mar (Calunga Grande).

Não pense que apenas homens fortes eram comercializados: Mulheres e crianças também eram!

No Brasil

Assim que chegavam ao Brasil, eram submetidos a um regime de engorda (para aumentar o preço), obrigados a se exercitarem para fortalecer a musculatura, tinham o corpo banhado em óleo (para ficar mais “vistoso”), enfim, tudo para aumentar o lucro.

Os escravos eram marcados (como hoje se marca gado), com as iniciais do traficante e, posteriormente, com as iniciais de seus “donos”. Quando eram convertidos ao catolicismo (já que eram obrigados a isso), ganhavam um nome cristão (por isso você vê muitos Pai José, Pai Joaquim, Vó Maria, nos terreiros) e, não raro, uma marca de cruz no peito, para que nunca esquecessem sua nova fé (você já se perguntou por que os pretos-velhos costumam fazer uma cruz no chão quando chegam? Existem outros fatores, mas este é um deles).

Mercados eram organizados para revenda dos escravos no Brasil, como o conhecido Cais do Valongo, no Rio de Janeiro.

Os escravos eram frequentemente deixados nus para que os compradores pudessem avalia-los quanto a saúde física e disposição para o trabalho. Após acertado o preço, cada fazendeiro (principal comprador) adquiria uma leva completa que era separada de sua família (caso tivesse vindo com ela), indo para uma região completamente desconhecida para ele.

Como estratégia para enfraquecer qualquer levante, os escravos eram misturados entre povos de diferentes etnias, diferentes línguas e costumes e, não raro, historicamente inimigos (tente imaginar quão desesperador deve ter sido).

Chegando em suas respectivas fazendas, eram obrigados a viverem amontoados numa senzala sem nenhum tipo de conforto, cuidados médicos ou qualquer traço de dignidade.

O trabalho era essencialmente braçal nas fazendas de cana-de-açúcar, posteriormente nas plantações de café, nas minas de ouro, etc., embora alguns trabalhassem na “casa grande” ou acabassem desempenhando outras tarefas. Eram vigiados dia e noite por feitores armados que, não raro, agiam com brutalidade e cometiam toda sorte de violências.

Os escravos, contudo, resistiam e várias formas foram empregadas para acentuar esta resistência: Mulheres abortavam para que seus filhos não viessem a ser escravos, muitos fugiam buscando refúgios em comunidades indígenas ou em quilombos, outros tantos lutavam contra seus “senhores”, etc.

Contudo, se os colonos agiam com brutalidade nos primeiros séculos de escravidão, gradativamente, os escravos foram conquistando direitos, como o de comprar a própria liberdade, caso conseguissem dinheiro para isso.

Mas, espere, como isso seria possível?

Embora o quadro retratado nas novelas e filmes sejam o do escravo nas fazendas, é fato que eles estavam em toda a sociedade. Os escravos que viviam nas cidades desfrutavam de “liberdade”, podiam transitar pela cidade e tinham a oportunidade de trabalhar de forma “livre” auferindo lucros para si e repartindo-o com seus senhores.

Senhora na liteira carregada por dois escravos. Acervo Geledés
É pouco comentado, mas muitos escravos trabalhavam carregando ricos e estrangeiros em liteiras; carregando as compras do mercado; entregando correspondências entre cidades ou entre fazendas, barbeiros, músicos, etc.

Em suma, a vida do escravo não se resumia – principalmente com o correr dos séculos – ao trabalho duro e rude das fazendas. 

Inclusive, muitas leis foram criadas para “proteger” os mesmos, como por exemplo a lei do Ventre Livre, de 1871, que dizia que os filhos de escravos nascidos após esta data eram considerados livres, desde que trabalhassem até os 21 anos na fazenda de seus senhores ou mesmo a lei dos Sexagenários, que dava liberdade aos escravos com mais de 65 anos de idade.

Antes de encerramos este item, é preciso dizer que a escravidão no Brasil foi brutal e cruel e não há adjetivo para qualifica-la de forma plena. Incontáveis crimes e abusos aconteceram em solo brasileiro. Entretanto, nem sempre os escravos eram maltratados.

Embora não deixassem de ser escravos e, portanto, propriedade de alguém, muitos fazendeiros tratavam seus escravos com alguma humanidade, conferindo-lhes moradias separadas para cada casal com sua família, evitavam castigos físicos (apenas em último caso) e até mesmo premiavam os “bons trabalhadores” com a sua própria liberdade (que muitas vezes era recusada, especialmente, por não se ter para onde ir).

Assim, embora nossas representações sobre a escravidão ressaltem a brutalidade com que os escravos foram tratados, é importante compreender a complexidade que envolveu as relações entre os escravos na sociedade brasileira, especialmente, num tempo marcado por ideologias como o que estamos vivendo...

Para encerrar, cumpre dizer que muitos escravos conseguiram sua liberdade, outros tantos conseguiram comprar suas próprias terras, alguns possuíam seus próprios escravos a trabalharem em suas propriedades, enquanto outros voltaram para seus países de origem.

Religião

Havia “um quê” na “inocência dos índios” que cativava os jesuítas (talvez, sentindo-se mais próximos da “humanidade natural”, antes da expulsão do paraíso). O mesmo, porém, não aconteceu em relação aos escravos negros.

A igreja se beneficiava da escravidão, especialmente, como forma de subsistência do branco nas Américas, nem tanto a forma como os negros eram tratados, mas havia “facilitação das consciências” escravocratas pela igreja.

Inicialmente, as religiosidades dos negros eram duramente reprimidas, até mesmo como forma de controle social. Lembra-se que comentamos sobre a mistura de etnias para enfraquecer a possibilidade de levantes? Pois a cristianização forçada e a repressão às práticas religiosas dos negros também foram uma forma de dominação e quebra das identidades.

Assim, ao cabo de algumas gerações, a religiosidade vinda com os primeiros escravos, sendo transmitida de forma oral aos descendentes, que eram misturados e, frequentemente, vendidos várias vezes, passando por várias fazendas, vivendo com várias outras culturas, acabou se mesclando para sobreviver.

Assim nasceu a religiosidade afro-brasileira, isto é, possuindo uma raiz afro (africana), mas misturada com elementos típicos do Brasil como a cultura indígena e também a católica.

Se, a princípio, os fazendeiros buscavam reprimir a religiosidade dos negros como estratégia para enfraquecer qualquer levante ou para facilitar a assimilação do catolicismo, em algum momento se percebeu que eles trabalhavam mais e melhor se pudessem exercê-la.

Assim, muitos fazendeiros permitiam o descanso dos escravos aos domingos, sendo-lhes permitido organizar festas, danças e cerimônias. Entretanto, o culto às divindades era considerado extremamente negativo, forçando os escravos e disfarça-lo em forma de culto aos Santos católicos.

Quando questionados, diziam que estavam louvando os Santos na “língua deles”.

Se, num primeiro momento, o disfarce do culto aos Orixás/Voduns/Inkices (falaremos mais sobre isso no capítulo sobre os Candomblés), foi disfarçado com a imagem do Santo, ao longo de algumas gerações, tornou-se parte da cultura de modo que o Orixá se tornou o Santo e vice-versa (em outro momento voltaremos a este assunto quando abordamos o sincretismo).

Abolição

O fim da escravidão no Brasil não foi um ato de caridade da princesa Isabel. A bem da verdade, a coroa sofria pressões de todos os lados: a elite intelectual, buscando ares de modernidade, apoiava o fim da escravidão; a Inglaterra, depois de ter usado e abusado da escravidão queria o término da mesma, pressionando o Brasil em prol de interesses próprios; os republicanos, que ganhavam cada dia mais força, também desejavam o fim da escravidão que já havia sido abolida em todos os demais países da América.

Assim, a princesa Isabel não teve muita escolha.

Com o fim da escravidão, os negros ficaram completamente desamparados, sem nenhuma política que buscasse inseri-los na sociedade ou reintegrá-los de alguma forma (lembre-se: foram mais de 300 anos de escravidão). Assim, em minha opinião, embora todo o processo de escravização tenha sido terrível, esta foi a maior violência praticada contra os escravos: Dar-lhes a liberdade sem lugar na sociedade!

Imagine que, a partir de amanhã, você não trabalhará mais onde trabalha e, mais, a casa onde você mora, por pior que seja, também não será mais sua. Você terá que sair dali, procurar outro trabalho, arrumar outro teto e, detalhe: você será praticamente desprezado por toda a sociedade que pensa que você é um selvagem, desalmado, que só serve para trabalhar e “olhe lá”.

O fim da escravidão é marcado por um momento de grande angústia e descaso. Vários libertos migraram-se para grandes centros, em busca de uma oportunidade e, não as encontrando, terminaram por se fixar nos morros, dando origem às favelas, juntamente com outros extratos sociais menos favorecidos.

Revelações Espirituais

Agora que você já estudou um pouco (lembre-se que nosso curso é básico) sobre a escravidão dos negros no Brasil, pergunto: Você já pensou sobre a razão da escravidão?

Eu já conversei sobre isso com alguns pretos-velhos que me responderam o seguinte:

Os espíritos que se reencarnaram como escravos na África ou como descendentes de escravos no Brasil, eram espíritos oriundos de diversos povos da antiguidade e que, ao longo de múltiplas encarnações, adquiriram dívidas pesadíssimas com a lei Divina.

Espíritos de romanos, gregos, fenícios, maias, chineses (enfim, povos com características imperialistas), passaram por um processo de expiação coletiva, privados da própria liberdade que, no passado, não souberam valorizar.

Aqui faço um adendo para lembrar que este tópico é sobre as revelações espirituais que obtive. É certo que alguém envolvido por ideologias, ao ler este trecho, pode ser levado a pensar que estou procurando justificar as atrocidades contra os negros, longe disso.

É sabido que os saberes espirituais nem sempre se casam com os saberes temporais e frágeis da Terra e que, ao examinarmos uma questão tão importante como esta, podemos partir de premissas humanas, mas nosso objetivo é atingir o espiritual.

Os pretos-velhos me disseram, ainda, que o processo expiatório foi muito pior do que se supunha a princípio, pois muitos dos que obtiveram posições de destaque e poderio, tanto entre os portugueses quanto entre os brasileiros, outrora, foram espíritos que muito sucumbiram pelo poder e que passavam novamente pela tentação de tê-lo nas mãos.

Do entrechoque de culturas, dos sofrimentos aqui vividos, dos “laços cármicos” gerados entre senhores e escravos, portugueses, brasileiros, holandeses, espanhóis, etc., nasceu a linha dos Pretos-Velhos que personifica as almas que passaram por este processo expiatório duríssimo e mesmo com tanta adversidade, conseguiram vencê-la, sublimá-la, tornando-se espíritos melhores à medida que se libertaram de parte das dívidas com o passado e que retornam, agora como espíritos atuantes nos terreiros, a fim de liquidarem o restante da dívida exercendo a caridade, não raro, entre os que lhes foram algozes, no passado.

Nota:

Lembra-se que, no segundo capítulo, eu comentei que a minha ligação espiritual era mais forte com os pretos-velhos que com os caboclos? Pois bem, contarei algo da minha intimidade.

O primeiro preto-velho que eu incorporei foi o Pai José do Congo, entidade boníssima, alma sublimada, paciente ao extremo, que sempre se manifestava com o olho esquerdo fechado. Não importa quanta força eu fizesse, como médium consciente, o meu olho esquerdo, durante a incorporação, parecia chumbado.

Certo dia, conversando com os membros do terreiro, disse que se manifestava através de mim como forma de me ajudar a evoluir e que o olho que “não prestava” havia sido queimado com faca quente por mim em uma encarnação passada, aqui mesmo em Uberaba, quando então vivíamos numa pequena fazenda onde ele servia como mordomo... Pai José não apenas conseguira evoluir, como conseguira me perdoar pela atrocidade cometida e, não obstante isto, se manifestava através de mim para, juntos, caminharmos alguns passos na eternidade.

Algum tempo depois, avisou-nos, com pesar, que “iria subir”, que o Mundo Espiritual havia lhe convocado a nova tarefa e que precisaria se afastar por um tempo, mas voltaria sempre que possível.

Despediu-se e se foi.

Vários meses depois, antes de começar uma gira, tão comum quanto qualquer outra, senti sua presença, sua energia e, por breves segundo, consegui vê-lo com uma aparência bem diferente da que havia visto anteriormente, mas a mesma essência, a mesma energia suave, a mesma força!

Quando o vi pela primeira vez, era baixo, mais mulato do que negro, quase completamente careca, gordo, sem barba, usava óculos de lentes redondas e uma roupa branca surrada. Desta feita, vi um homem com mais de um metro e noventa, muito branco, completamente careca, com uma túnica branco-azulada, que se aproximou de mim e disse:

- Antes, pagava as minhas dívidas como escravo.... Agora, parto para a quitação das dívidas adquiridas na Grécia Antiga!

Salve, Pai José!

Obs.: Não deve ser surpresa (e acredito que muitos já devem ter ouvido isso em seus terreiros), o fato de muitos médiuns na Umbanda, hoje, terem sido, no passado: Feitores, capitães do mato, senhores, sinhás ou mercadores de escravos.... Aliás, é esta verdade claríssima que as entidades nos trazem que nos possibilita compreender por que, muitas vezes, a convivência entre companheiros do terreiro se torna tão difícil...

Leonardo Montes

Comentários

(9)
  1. Começando a entender e sentir a Umbanda no coração

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  2. EILTON DO NASCIMENTO15 de maio de 2019 às 15:40

    Gratidão,pelos ensinamentos,Deus ilumine Sempre!!!

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  3. Quanta emoção me toma o coração ao ler cada palavra aqui escrita.... É uma mistura se sentimentos, não consigo explicar, apenas sinto.... Paz e Luz a você, Léo Montes .

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  4. Que bom que gostou. Nos ajude, compartilhando!

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  5. Excelente aula! E a narrativa sobre Pai José me levou às lágrimas! E fico imaginando o tamanho da dívida que o Brasil adquiriu nesses 3 séculos de escravidão! E quanto "sinhô" e "sinhá" transita ainda na sociedade de hoje, onde o preconceito revela traços de um passado comprometido.
    Axé, irmão! Que os Pretos Velhos lhe abençoem hoje e sempre!

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  6. Caro irmão Léo, seus textos são maravilhosos, suas considerações finais me deixou muito pensativo à respeito o por que muitos irmãos não se darem bem uns com outros em terreiros. Muito obrigado irmão por seus esclarecimentos. Que nossos divinos Pais e Mães velhos te iluminem sempre. Abraço fraterno.

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  7. Grato. O terreiro é um hospital para atender os consulentes enfermos, cujos médicos também estão em tratamento de si próprios.

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