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Uma
das obras mais importantes para conhecermos o “momento religioso” que antecedeu
o surgimento da Umbanda, no Rio de Janeiro, é a obra: As Religiões no Rio, de
João do Rio.
Este
livro, composto de reportagens publicadas em 1904 (e reunidas em um livro em
1906), formam um registro histórico muito importante sobre aquilo que denomino
como “efervescência religiosa” no Rio de Janeiro no início do século XX e que
nos oferece um panorama sobre a vida religiosa da então capital do Brasil.
Contudo,
é preciso olhar a obra com cautela.
A
escrita de João do Rio, além de rebuscada (ele era membro da Academia Brasileira
de Letras), é recheada de referências cruzadas e citações de obras e autores
que, normalmente, são desconhecidos do grande público, o que dificulta, sobremaneira,
a leitura.
Além
do mais, é composta de frases que soam pejorativas, satíricas e mesmo
preconceituosas, dificultando a compreensão do culto por ele descrito. Ademais,
enquanto lia, fiquei pensando se o “guia turístico” por ele escolhido não
insuflava, propositalmente, situações bizarras para satisfazer a curiosidade do
seu “turista”.
Seja
como for e mesmo com seus senões, a obra é interessante e nos revela um Rio de
Janeiro abundante em termos do que chamarei de “cultos mediúnicos”, já que a
descrição de João não é rica o suficiente para determinar, com precisão, a
origem e procedência de cada movimento por ele descrito.
Como
se pode notar – e este é um alerta muito importante – estudar sobre as
religiões não é tarefa fácil em razão da complexidade do tema e de todas as suas
nuances. Aliás, isto é uma lição para a vida: buscar sempre observar diferentes ângulos antes de se concluir sobre
algo.
Panorama geral
Neste
livro, João do Rio visita diversos agrupamentos religiosos, registrando suas observações
e opiniões sobre o que via nas mais diversas religiões. A importância destas
observações, em nosso estudo, cada vez mais afunilado ao universo da Umbanda, é
que ele sustenta um ponto de vista do Caboclo das Sete Encruzilhadas: os trabalhos mediúnicos estavam voltados,
preponderantemente, para o mal e é por isso que a Umbanda surgiu!
Vejamos
algumas citações que constam em apenas uma página (p.12):
“-
Vamos lá, dizia eu, camarário, como é que faz para matar
um cidadão qualquer?
Eles riam, voltavam o rosto
com uns gestos quase femininos.
- Sei lá!
Outros porém tagarelavam:
- V. S. não acredita? É que
ainda não viu nada. Aqui está quem fez um deputado! O...
Os nomes conhecidos surgiam,
tumultuavam, empregos na polícia, na Câmara, relações no Senado, interferências
em desaguisados de famílias notáveis.
- Mas como se faz isso?
- Então o senhor pensa que a
gente diz assim o seu meio de vida?”
Em
outro momento:
“Há
feitiços de todos os matizes, feitiços lúgubres, poéticos, risonhos, sinistros.
O feiticeiro joga com o Amor, a Vida, o Dinheiro e a Morte, como os
malabaristas dos circos com objetos de pesos diversos. Todos entretanto são de
uma ignorância absoluta e afetam intimidades superiores, colocando-se logo na
alta política, no clero e na magistratura. Eu fui saber, aterrado, de uma
conspiração política com os feiticeiros, nada mais nada menos que a morte de um
passado presidente da República. A princípio achei impossível, mas os meus
informantes citavam com simplicidade nomes que estiveram publicamente
implicados em conspirações, homens a quem tiro o meu chapéu e aperto a mão. Era
impossível a dúvida.”
Na página seguinte:
“Há também feitiços porcos, o
mantucá, por exemplo, preparado com excremento de vários animais e coisas que a
decência nós salva de dizer; e feitiços cômicos como o terrível xuxuguruxu...
Esse faz-se com um espinho de Santo Antônio besuntado de ovo e enterra-se à
porta do inimigo, batendo três vezes e dizendo:- Xuxuguruxu io le bará.”
“A policia visita essas casas
como consultante. Soube nesses antros que um antigo delegado estava amarrado a
uma paixão, graças aos prodígios de um galo preto”. (p. 13)
“Eu vi senhoras de alta
posição saltando, às escondidas, de carros de praça, como nos folhetins de
romances, para correr, tapando a cara com véus espessos, a essas casas; eu vi
sessões em que mãos enluvadas tiravam das carteiras ricas notas e notas aos
gritos dos negros malcriados que bradavam: - Bota dinheiro aqui!”. (p. 13)
“- Ah! meu senhor. Não é só
por causa do egum que negro mata. Quando as iauô não andam direito, quando não
fingem bem, quase nunca escapam de morrer. Há vários processos de morte, a
morte lenta, com beberagens e feitiços diretos, a morte na camarinha por
sufocação...” (p. 15)
“Quando entramos na sala das
almas, à luz fumarenta dos candeeiros a cena era estranha. Havia brancas,
meretrizes de grandes rodelas de carmim nas faces, mulatas em camisa, mostrando
os braços com desenhos e iniciais em azul dos proprietários do seu amor, e
negros, muitos negros. Estes últimos, sentados em roda do assoalho, estavam
quase nus, e algumas negras mesmo inteiramente nuas com os seios pendentes e a
carapinha cheia de banha.” (p. 16)
“- Eles
fingem os gestos dos mortos, segredou-me Antônio. Palmas ressoavam estridentes
saudando a chegada do invisível, as varas de marmelo lanhavam o ar e as almas,
e naquele círculo silvante, ao som dos xeguedés e dos atabaques batiam
surdamente no chão aos pulos da dança demoníaca.” (p. 17)
“- Veja V. S. a chantage,
murmurou Antônio. Os negros recebem dinheiro antes dos homens e obrigam as
criaturas pelo terror a tudo quanto quiserem. Por isso quem descobre o egum, morre”.
(p. 17)
João do Rio nos descreve
sessões em que as pessoas ficavam nuas, onde sacerdotes recebiam dinheiro
previamente para favorecer a consulta para este ou aquele lado, onde pessoas
fantasiavam-se de “espíritos” para amedrontar ou extorquir os mais sensíveis,
grupos que juravam segredos que, se revelados, eram punidos com a morte, etc.
Até que ponto essas descrições
são fiéis, é difícil dizer. Contudo, sabe-se que não foram inventadas,
embora provavelmente exageradas, é fato que um pouco de tudo isso havia aquela
época como continua havendo hoje em dia.
Atmosfera
espiritual
As entidades que me orientaram
sempre me falaram das imensas dificuldades que enfrentaram no plano espiritual,
antes do nascimento da Umbanda.
Se procuravam se aproximar dos
centros espíritas, eram rechaçadas, afinal, o escravo era inculto, não sabia
ler nem escrever, o que iria ensinar? E o que dizer do índio, selvagem, vivendo
nas matas, clara demonstração de espírito primitivo?
Quando conseguiam brechas nas
sessões, eram tratadas como entidades que necessitavam de amparo e socorro, não
sendo muito bem toleradas se procurassem instruir e socorrer.
Havia um preconceito latente
na sociedade e, “naturalmente”, essas entidades eram vistas como inferiores em
razão do preconceito institucionalizado que a sociedade brasileira criou com a
ajuda dos portugueses em trezentos anos de escravidão africana e desprezo
indígena.
Ao contrário do que muitos
pensam, essa recusa entre os espíritas não se baseou no fato das entidades utilizarem
elementos como as velas e o cachimbo, por exemplo. Bastaria falar como um
escravo ou um índio para logo serem “fraternalmente” socorridas.
Além do mais, estávamos na
virada do século, bombardeados de referências iluministas/positivistas francesas onde a razão (e não a religião) era a grande engrenagem daqueles tempos
(daí a predileção, nas sessões espíritas, pela manifestação de entidades que
foram conhecidas na Terra por seu saber científico ou filosófico e não por
entidades que partilhavam outros saberes).
Aqui é importante, contudo,
compreender que não se tratava propriamente de preconceito religioso, mas de um
reflexo religioso do preconceito que era difundido na sociedade daquele tempo. Portanto,
precisamos ter cuidado para não julgar negativamente as pessoas na virada do século, pois nós também temos as nossas contradições hoje em dia.
Vejamos um exemplo:
As giras com os Ciganos, em
nossa casa, sem dúvida, são as mais disputadas. Geralmente, aparecem pessoas que
nunca vimos antes em nossa casa e, talvez, não vejamos novamente. Trata-se de
um trabalho que faz a casa lotar!
Contudo, aqui em Uberaba
mesmo, os ciganos são muito marginalizados e malvistos. Possuem fama de ladrões
e violentos. Quando surge um acampamento cigano num bairro, a população daquele
local faz de tudo para que sumam dali.
Quem é de Uberaba sabe que isto
é verdade assim como sei que não ocorre apenas por aqui: em praticamente todo
o Brasil os ciganos são malvistos, exceto no terreiro, quando atraem a
curiosidade de muitos que mudam de lado na calçada quando veem uma cigana no
centro da cidade, mas disputam espaço no terreiro para que suas mãos sejam
lidas pelos "ciganos espirituais"...
Por esta razão, em meus
estudos, faço questão de deixar claro que não há apenas uma maneira de se ver e
perceber as coisas e que, antes de julgarmos negativamente, precisamos
refletir, nos avaliar...
Voltando ao contexto
espiritual do Brasil, vimos que os centros espíritas não eram os ambientes mais
adequados para que as almas de ex-escravos e indígenas pudessem se manifestar. As Macumbas tampouco ofereciam melhores condições, como nos mostra João do Rio. Os Candomblés estavam focados no culto às divindades africanas, enfim, a
alternativa mais viável era a criação de um movimento novo, aproveitando o que já
havia de religiosidade disseminada entre o povo, a fim de que estas entidades
(e tantas outras, com o tempo), pudessem se unir e se manifestar trazendo a sua
caridade.
Até a próxima aula!
Leonardo Montes